Escrito por Expedito Aníbal de Castro
A escuridão e o frio eram palpáveis na cela. A esteira de arbustos e palhas parecia possuir espinhos naquela noite. Os cobertores velhos e rasgados deixavam passar o frio que feria como agulhas.
Os demais prisioneiros dormiam: alguns roncavam, outros se mexiam muito, mas todos dormiam. Menos ele.
Os pensamentos iam e voltavam numa velocidade frenética, absorvendo todo seu oxigênio, todo seu vigor. Pensava nos companheiros que, apesar das torturas, não delatara. Poderiam continuar com a revolução que se prenunciava em vários locais do país. A revolução para a qual colocara à disposição todo seu acervo intelectual e seu pendor literário. Tinha noção do valor dos seus escritos e do impacto que causara no meio intelectual, mas, agora, nada mais era que um revolucionário preso.
Pensava na mãe, agora sem alguém para ajudá-la. Ela lutara com todas as forças para sustentá-lo, mesmo carregando como sobre peso um marido bêbado – como era comum – que trocava de emprego como quem troca de roupa.
O padre estivera com ele na tarde anterior. Fizera sua confissão com toda fé. Poderia esperar algo melhor em uma vida posterior? Ou não haveria posterior? Haveria alma, espírito? Somente a vida do corpo? Deus não pregaria uma peça desse tipo, de humor negro a toda humanidade! Apesar das indagações, sua fé continuava inabalável.
Costumava comparar a revolução com a revolução de Cristo: voltada para os mais infortunados, para os famintos, para os sem esperança, para os bêbados, como seu pai, que não encontrava sentido na vida, para os que trabalhavam mais de doze horas por dia sem perspectiva alguma de vida melhor. De uma maneira ou de outra, os revolucionários eram como Cristo, pregavam e lutavam por uma vida melhor: terrena, mas melhor.
O padre iria acompanhá-lo, pela manhã, quando se dirigisse ao local da execução. Procurava desviar o pensamento desse momento, mas ele voltava com uma persistência dolorida. Precisava estar no controle de suas emoções e não demonstrar medo. Precisava ser homem, digno, forte, sem hesitação, até no momento final; mostrar que o fervor revolucionário era superior ao medo da morte, do “posterior”. O que pensariam seus amigos se fraquejasse? E o restante da população, se visse num líder revolucionário, um covarde?
O sol, coberto por densas nuvens, mostrou um pouco do seu brilho, mas o frio continuava intenso. Repassou, um tanto rapidamente, os detalhes de sua vida: infância sofrida, juventude arredia e voltada para os livros e, na fase adulta, membro ativo da revolução que pretendia depor o Czar e desfraldar a bandeira de um governo proletário.
O carcereiro chegou trazendo um pouco de alimentação quente. Comeu sem gosto. Vestiu-se. O frio aumentou com a roupa simples designada para a execução. Dois soldados postaram-se ao seu lado. Conduziram-no pela prisão e, na porta de saída, estava o Padre. Fez o Sinal da Cruz e o Padre acompanhou-o rezando.
Oito soldados estavam a postos com seus fuzis. O oficial encarregado da execução indagou se havia algum pedido especial a ser expresso pelo preso. Nenhum. O Padre deu-lhe a extrema unção. Vendaram-lhe os olhos. Amarraram-no a um poste. Ele rezava e pedia forças a Deus. Não fraquejou.
O oficial iniciou as ordens finais. A partir daquele momento Dostoievski não conseguia pensar em nada; um turbilhão passava pela sua mente em total desordem: medo, frio, escuro, era um animal acossado pela morte iminente. Atenção! Apontar! Fogo!
Dostoievski não sentiu, fisicamente, as perfurações das balas, mas psicologicamente estava morto. Por quê não sentia dor? A morte seria assim, tão fácil? O quê passaria a ver, a sentir, a encontrar? As indagações continuavam e nenhuma tinha resposta. Ele começou a observar que não sentia dores quando ouviu a ordem para desvendá-lo e desamarrá-lo. Estava perplexo. Todos os fuzis estavam com defeito? O quê acontecera?
A explicação veio de imediato. O oficial informou-o de que, instantes antes da execução, o Czar comutara sua pena de morte em desterro e trabalhos forçados na Sibéria, mas que a encenação deveria prosseguir até ao fim. Dostoievski viu a morte em vida e esta nova oportunidade foi aproveitada para uma produção extremamente profícua de obras que descem ao fundo mais fundo da alma humana.